segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

"Trevas, oh! Trevas"

termino o ano com um excerto sobre a morte “imaginária” de Guy de Maupassant, que me trouxe à memória The Call of the Wild, o filme de William Wellman baseado no livro de Jack London (cuja leitura ainda está por concretizar). talvez não haja melhor maneira de celebrar a vida, os anos que passam, do que esta de convocar o seu oposto, ainda para mais se o oposto se camuflar num uivo selvagem, num grito das trevas para encontrar uma nova luz:

uma boa Luz, é o que desejo a todos para 2015.

«No dia 6 de Julho de 1893, após anos de injecções de Pravaz, Guy de Maupassant morre de gatas, ladrando e salivando, face a uma parede que estava a lamber. Tinha quase quarenta e três anos. As suas últimas palavras terão sido: “Trevas, oh! Trevas”. Pouco antes, tinha afirmado: “Alguns cães que uivam exprimem muito bem o meu estado. É um lamento deplorável que não tem destinatário, que não vai para lado nenhum, que nada diz, e que lança na noite o grito da angústia preso junto ao peito que eu gostaria de poder soltar... Se eu pudesse gemer como eles, iria embora de vez em quando, muitas vezes, para uma grande planície ou para o fundo de um bosque e uivaria assim, durante horas, nas trevas”.»

Mortes imaginárias, Michel Schneider










quarta-feira, 26 de novembro de 2014

boire

[Os leopardos invadem o templo e bebem o conteúdo dos vasos sacrificiais, esvaziando-os (...).]

«Aforismos», Franz Kafka




(Angel, Ernst Lubitsch, Of Human Bondage, John Cromwell, Who's Afraid of Virginia Woolf?, Mike Nichols, The Last Flight, William Dieterle)



quarta-feira, 5 de novembro de 2014

acorde

o acorde final de uma canção que é, em si mesma, um dilatado acorde final, imprime um aforismo no peito. é assim como uma lasca de vidro que corta um pedacinho de pele sobre a zona do coração, e fica-se lá com o acorde, fica-se lá com a canção inteira, a dizer-nos um aforismo barato, desses que a alma turística gosta de coleccionar. mas a gente já não pode viajar mais, e estaciona numa terra-de-ninguém. das paredes dessa terra-de-ninguém, salta o acorde final de uma canção que é, em si mesma, um dilatado acorde final. sangra o aforismo: é piroso, mas corta tanto como uma lasca de vidro. voltamos a fazer as malas.

Intermezzo (1939)

domingo, 2 de novembro de 2014

mirror(s)

[«(...) not yet depart, my soul, not yet awhile depart.»]

Robert Louis Stevenson




(Chicago, 1927; La vérité, 1960; The Apartment, 1960; Die Sehnsucht der Veronika Voss, 1982; Cléo de 5 à 7, 1962; Sunset Boulevard, 1950; Stage Fright, 1950.)

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

música nos sapatos

fui ouvir Mussorgsky e Tchaikovsky à Gulbenkian. Uma noite no monte calvo e Canções e danças da morte (versões orquestradas), do primeiro; O lago dos Cisnes, do segundo. clássicos dos clássicos, trevas sonoras sucedidas de ventos primaveris. não em jeito de desfaçatez, passei o tempo todo a olhar para os sapatos dos senhores e senhoras da orquestra - talvez uma infantilidade, mas não desfaçatez. e neste acto genuíno de contemplação, dei comigo a entrar num profundo enlevo com os movimentos dos pés de quem doma os instrumentos. cada um tinha posições diferentes, uma forma de se equilibrar única. percebi então que a música está muito “agarrada ao chão”, que os pés são um sensor de estímulos - a nota sai mais assim ou assado se o pé tomar esta ou aquela posição... pronto, já estou a exagerar, claro, e além disso não percebo nada de música. mas a verdade é que esta noite tudo me soou mais cavernoso, mais denso, como a terra a tremer. desmistificando um pouco: estava sentada na primeira fila. 
no final, quando subi os olhos ao céu, que é como quem diz, ao nível dos instrumentos, vi a corda solta de um dos violinos, a bailar na luz quente do palco, enquanto se lhe pedia um último labor para o tchanaaam. nisto, pensei apenas, “uau, a terra tremeu mesmo”. aplausos.


Das Schiff der verlorenen Menschen, Maurice Tourneur (1929)

sábado, 4 de outubro de 2014

[he hears the lamb's innocent call]

"And now beside thee, bleating lamb,
"I can lie down and sleep (...).


William Blake, Songs of Innocence and of Experience



(Au hasard Balthazar, Robert Bresson)

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

aniversário


imagino-o com a idade que faria hoje. como seria? recordo a vontade que tantas vezes tive de voar, para ir ter com ele, através de cada desenho guardado nas folhas deste Livro. na altura, ainda não sabia que bastavam balões. agora talvez já seja tarde, talvez tenha peso a mais para isso. e daí não sei, não cresci muito, e isso porque também não desejei assim tanto ser grande




(Le ballon rouge, Albert Lamorisse)

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Time fades away




(L'année dernière à Marienbad, Alain Resnais)

terça-feira, 16 de setembro de 2014

odiar um filme

desde o Terje Vigen (Sjöström) que não apanhava uma pequena depressão cinéfila, ou cinética. sim, uma depressãozinha derivada da concentração de movimento sem um único som. às vezes o cinema mudo é gritantemente mudo, de tal maneira que a sua capacidade de linguagem universal pendura-nos o coração num estendal à chuva, com duas molas ferrugentas mas fortes. 
fui ver o Fièvre (Louis Delluc). não gostei. apetece-me mesmo dizer: odiei. odiei voltar àquela imagem que guardei de mim própria à janela, à espera que "o pai voltasse da tal viagem". Fièvre tem a metáfora e o impressionismo dessa espera: a vida portuária é uma espera infinita (tal como os desenhos que fazia para ele, quais barquinhos a chegarem ao porto). e apercebo-me agora de como sou susceptível ao impressionismo, mesmo que ele seja interior. ou, antes, porque ele é interior. e se não for entrar em contradição dizendo isto, gostei tanto do Fièvre que o odeio, assim como odiei (talvez mais sossegadamente) Terje Vigen. fiquei com saudades do tempo em que esperava, do tempo em que a ilusão operava em mim de uma forma mágica.  


(não quero falar mais sobre este filme.)


Fièvre, Delluc (1921)


Terje Vigen, Sjöström (1917)

sábado, 6 de setembro de 2014

«Au commencement était le verbe. Non. Au commencement était l'émotion.»

no seu primeiro filme, They Live by Night, Nicholas Ray apresentou-nos o seu cinema como quem apresenta Adão e Eva no Génesis: “This boy and this girl were never properly introduced to the world we live in… to tell their story. They live by night.” no seu primeiro filme, Boy Meets Girl, Leos Carax parece buscar a mesma natureza bíblica de uma origem, mas, no início ‘não era o verbo, era a emoção’. e a emoção nasce na (e da) noite, nas (e das) trevas. algumas obras preambulares são filhas dessa escuridão maternal da sala de cinema, brilhando como luas primogénitas na primeira noite da terra.


(assinado: Livre Silogismo)





sexta-feira, 29 de agosto de 2014

jogo(s)

«Os dias são piores do que as noites. Os jogos da noite são melhores do que os do dia. À noite, ele pode tornar-se invisível e chegar com maior velocidade, passando por cima dos telhados, aos sítios onde a sua presença é necessária. De dia, não se é invisível. De dia, tudo decorre mais devagar. De dia, os jogos não têm os mesmos atractivos.»

Jogos da Noite, Stig Dagerman








La Règle du Jeu, J. Renoir

domingo, 10 de agosto de 2014

não ser, para existir

entre o perto e o longe. entre o olá e adeus. entre o agora e o nunca. entre ganhar e perder. entre o doce e o amargo. entre acordar e adormecer. entre o sim e o não. entre o beijo e o abraço. entre partir e voltar. entre a luz e a escuridão. entre recordar e esquecer. entre a ficção e a realidade. entre o tudo e o nada.

despi o ser e deixei-o pendurado no armário do limbo. o cabide está velho.


Prix de Beauté, A. Genina


quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Temptation






https://www.youtube.com/watch?v=7p1qQjWIa60


terça-feira, 5 de agosto de 2014

apetecia-me escrever sobre um filme

apetecia-me escrever sobre um filme. fui ao visionamento do Jimmy’s Hall com a esperança colada aos pés, como palmilhas energéticas que alentam um acordar-cedo-para-algo-novo-a-acontecer. eu sabia que o Loach não sairia muito do seu “caldinho” habitual, dessa coerência um pouco enfadonha, dessas duas ou três estrelinhas mastigadas. é pena, porque eu queria mesmo escrever sobre um filme, pensar sobre ele, descobri-lhe as verdades ocultas ou as falsidades descaradas. perdi a vontade, ou melhor, adormeci nessa vontade, tal foi o aborrecimento. ainda assim, e porque gosto de encontrar sempre um feixe de luz (quando é possível) nas coisas mornas, este é o momento mais apreciável do filme: dois corpos moldados pelo tempo – o tempo da ausência -, dois olhares que se querem, no compasso de uma última dança no salão vazio. um adeus sussurrado e testemunhado pelas cadeiras arrumadas.



sexta-feira, 1 de agosto de 2014

a arte de descrever uma mulher

«Sentavas-te, silenciosa, entre os velhos, rodeada de madeiras escuras, e, inclinada para a frente, oferecendo apenas a tua cabeleira ao círculo dourado dos candeeiros, reinavas, coroada de luz. Parecias-nos eterna por estares tão bem ligada às coisas, tão segura das coisas, dos teus pensamentos, do teu futuro. Reinavas...
 Contudo, nós queríamos saber se era possível fazer-te sofrer. Estreitar-te nos braços até te sufocar, porque sentíamos em ti uma presença humana que ansiávamos trazer à luz do dia. Uma ternura, uma tristeza que queríamos fazer-te subir aos olhos. E Bernis abraçava-te e tu coravas. E Bernis apertava-te com mais força e os teus  olhos ficavam brilhantes de lágrimas sem que os teus lábios se deformassem, como os das velhas quando choram, e Bernis dizia-me que aquelas lágrimas vinham de um coração a transbordar, e que eram mais preciosas do que diamantes, e que aquele que as bebesse seria imortal. Dizia-me também que habitavas o teu corpo, como aquela fada sob as águas, e que ele sabia mil sortilégios para te trazer à superfície, e que o mais seguro era fazer-te chorar. Era assim que te roubávamos amor. Mas quando te largávamos tu rias, e esse riso enchia-nos de confusão. Assim uma ave, se a apertamos com menos força, voa para longe. 
(...)
"Lê-nos um poema."
 Tu lias e, para nós, eram ensinamentos sobre o mundo, que não nos vinham do poeta, mas sim da tua sabedoria. E os infortúnios dos amantes e os choros das rainhas tornavam-se grandes coisas tranquilas. Morria-se de amor com tanta calma, na tua voz...»


Correio do Sul, Antoine de Saint-Exupéry



(Charulata, Satyajit Ray)

quarta-feira, 23 de julho de 2014

heavenly

- não faço ideia do que estás a falar.
- mas é como se tivéssemos visto um OVNI. somos testemunhas do mesmo facto, e somos testemunho de qualquer coisa...
- não faço ideia do que estás a falar.
- tens medo?
- não faço ideia do que estás a falar.
- queres que guarde segredo?
- não faço ideia do que estás a falar.
- eu também não.


- estás a ouvir a cotovia?
- shhh... estou.


Heavenly Creatures, Peter Jackson

quinta-feira, 17 de julho de 2014

uma ida ao cinema

«- Leva-me ao cinema, não leva? – murmurou quase para si própria.
            Eikichi e eu, conduzidos parte do caminho por um homem de Koshuya de aparência duvidosa, fomos a uma estalagem que, segundo se dizia, pertencia a um ex-prefeito. Tomámos banho juntos e almoçámos peixe fresco do mar.
              Quando ele partiu, entreguei-lhe uns trocos:
   - Compra algumas flores para as exéquias de amanhã.
            Tinha explicado que deveria regressar a Tóquio no barco da manhã. Estava com falta de dinheiro, embora lhes tivesse dito que devia regressar à escola.
           - Bem, de qualquer maneira, vê-lo-emos este Inverno – afirmou a mulher mais velha. – Iremos buscá-lo ao barco – prosseguiu. – Avise-nos, quando vier. Ficará connosco (...).
           Quando os outros deixaram o quarto, pedi a Chiyoko e a Yuriko que viessem comigo ao cinema. Chiyoko, inclinada, pálida e cansada, pressionava com as mãos o abdómen.
              Yuriko olhou fixamente para o chão.
              A pequena dançarina estava lá em baixo a brincar com as crianças da estalagem. Assim que me viu descer, escapou-se e pôs-se a bajular a mulher mais velha para que a deixasse ir ao cinema. Regressou, distante e abalada.
(...)
Ao deixar a estalagem, a dançarina acariciava, sentada à entrada, um cão. Não consegui aproximar-me dela, e ela parecia não ter força para erguer os olhos.
Fui ao cinema sozinho. Uma mulher lia o diálogo com uma pequena lanterna eléctrica. Abandonei o lugar, quase imediatamente, e regressei à minha estalagem. Deixei-me ficar, por muito tempo, sentado, olhando para fora, com os cotovelos no peitoral da janela. A cidade estava escura. Julguei ouvir um tambor à distância, e sem razão especial dei comigo a chorar.»


Yasunari Kawabata,  A Dançarina de Izu



(Hijosen no onna, Yasujiro Ozu)

segunda-feira, 7 de julho de 2014

[estou?]

- liguei para fazer silêncio.

- ouço a tua respiração. o meu silêncio preferido.

(It's a Wonderful Life, F. Capra)

quarta-feira, 2 de julho de 2014

preces

há alturas na vida (e começar dizendo “há alturas na vida”, eu sei, é uma banalidade) em que  precisamos de nos libertar do sagrado. o sagrado não é uma cruz ao peito ou uma missa de Bach. podia ser. o sagrado é uma memória. uma memória que colocamos em causa, tal como os crentes, nos momentos de maior sofrimento, colocam em dúvida a existência de deus. olho para uma camisa antes de a depositar no tambor da máquina de lavar, e pergunto “estavas mesmo no meu corpo naquele dia?”. espero ansiosamente  um “não” que me conforte e devolva outra fé; encontro-me em genuflexão diante de um altar imaginário. mas as minhas preces são ignoradas: o “sim” insinua-se na cor da camisa e oferece um bilhete de volta a essa memória.


(memórias sagradas são puras ficções.)


An Affair to Remember, Leo McCarey

sexta-feira, 27 de junho de 2014

chamamento

«Quando Pina, em Roma, Cidade Aberta, escapa de uma fileira de soldados, que a deviam ter detido, para se lançar atrás do camião que transporta o seu noivo, numa corrida que começa à maneira do movimento burlesco, para terminar numa queda mortal, esse movimento excede, ao mesmo tempo, o visível da situação narrativa e a expressão do amor. (...) É uma dramaturgia do chamamento, transferida do plano religioso para o plano artístico, que ordena às personagens rossellinianas que passem de um modo de movimento e gravitação para outro, segundo o qual só poderão precipitar-se em queda livre.»


A Fábula Cinematográfica, Jacques Rancière





terça-feira, 24 de junho de 2014

corps

 Tout a été écrit par toi, par ce corps que tu as.
 Je vais arrêter là ce text pour en prendre un autre
de toi, fait pour toi, fait à ta place.

[Silence, et puis.]


C'est tout, M. Duras




Lady Chatterley, Pascal Ferran

segunda-feira, 16 de junho de 2014

gentil angústia

não somos nós que escrevemos, é o nosso ânimo que, tirando os dedos da inércia, escreve - quando a escrita é um acto de liberdade. escrevo espontaneamente através de sensações (geralmente extremas): ou quando sou muito feliz ou quando preciso de procurar a razão para um estado de tristeza, definir a palpabilidade da dor, e assim proteger/defender-me dela. é uma atitude feminina, que alguns bons homens também têm. dela nasceram grandes escritos e escritores, por isso, não é banal, faz parte do artifício (de arte) humano. mas eu não tenho arte, e uso-me de ferramentas toscas: do geral para o concreto, faço um inventário de possibilidades e, relativizando, nego a todas o protagonismo. no fim, ‘está tudo bem’, digo, ‘olha ali o sol’, e tento fazer uma cama para dormir sobre o assunto. mas algo insiste em permanecer colado à pele  (além deste calor abrasador), como aquela Angústia que traduz para português La Peau Douce, ou a «gentil angústia» de que um crítico de cinema falava, há não muito tempo, a propósito dos filmes de Bergman. o cinema leva-nos sempre ao encontro da linguagem da pele. nele descubro as minhas respostas, e algum conforto no peito. esta é a cama onde me deito.


[maldito espelho da casa de banho, que não me deixa lavar as mãos sem de seguida examinar a profundidade das olheiras.] 



La Peau Douce, François Truffaut

terça-feira, 3 de junho de 2014

I smile and I sing all alone

«This is my delight, thus to wait and watch at the wayside where shadow chases light and the rain comes in the wake of the summer.

Messengers, with tidings from unknown skies, greet me and speed along the road. My heart is glad within, and the breath of the passing breeze is sweet.

From dawn till dusk I sit here before my door, and I know that of a sudden the happy moment will arrive when I shall see.

In the meanwhile I smile and I sing all alone. In the meanwhile the air is filling with the perfume of promise.»


Gitanjali, Rabindranath Tagore


Le Petit Soldat, JLGodard

quarta-feira, 28 de maio de 2014

melancholy

a melancolia colou-se-me ao rosto. sou um palhaço pobre e cansado. a alegria vem em pequenas doses e consome-se avidamente. resta um prato vazio, ainda com os indícios da refeição.


[e a melancolia, pois claro.]



terça-feira, 20 de maio de 2014

'song offerings'

«I live in the hope of meeting with him; but this meeting is not yet.»

Gitanjali, Rabindranath Tagore



(The Shop Around the Corner, E. Lubitsch)

quinta-feira, 8 de maio de 2014

[sem título]

não sei onde deixei a história da minha vida. deve andar algures por aqui.