sábado, 31 de dezembro de 2011

vem aí alguém



disseram-me que foste visto, agora mesmo, numas escadas quaisquer, de uma rua qualquer, a fumar um cigarro e a olhar para o céu. esperas alguém? uma voz? uma estrela? uma gota de chuva? um foguete fora de horas? um balão vadio? ah! não, já sei... esperas que o ano acabe, e não queres dar nem mais um passo. esse cigarro é o último do maço, é o sabor que queres ter na boca, é o silêncio com que me recebes, é a espera em si.

meia-noite: cheguei. podes apagá-lo sem o terminar. dá-me a mão, o mundo espera-nos, o novo ano também.

vamos explorar.



foto: Henri Cartier-Bresson

sábado, 24 de dezembro de 2011

dia de...



"Correu para a janela e abriu-a. Depois espreitou para fora. Não havia nevoeiro nem névoa. O tempo estava puro, cintilante, alegre, agreste e frio, dum frio tão cortante que punha o sangue a dançar nas veias. Um sol dourado e luminoso brilhava no céu transparente e a atmosfera era doce e fresca. E os sinos continuavam a repicar alegremente. Que delícia, que delícia!

- Que dia é hoje? - gritou Scrooge chamando um rapaz que, vestido com o fato dos domingos, parara perto dali, talvez para olhar à sua volta.
- Eh? - respondeu o rapaz, perdido num espanto enorme.
- Que dia é hoje, rapaz? - disse Scrooge.
- Hoje! - replicou o rapaz. - Mas... é Dia de Natal!"



Cântico de Natal, Charles Dickens




volto sempre a Dickens. ainda acredito no Natal.

peço desculpa.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

tea time




(...)


- sim, eu sei.

- pensas que sabes, isso sim.

- já disse que sei, por isso sei.

- teimosa...

- vá lá...

- a tua certeza é tão frágil como tu. estás a ver aquele pássaro ali pousado? oooh... foi-se.

- o que queres dizer?

- eu não quero dizer nada, eu estou simplesmente a dizer o que devo dizer. deixa de pôr o selo da certeza em tudo. nem os teus passos na rua são certos. existem pedras no caminho, pequenas ou grandes, fazem tropeçar. ontem não começou a chover de repente? onde tinhas o guarda-chuva? e a chamada que não te atenderam? onde está o teu coração? já o encontraste?... arruma primeiro as tuas certezas mais íntimas, depois pensa em acreditar no resto.

- não falas como gente.

- mal de mim se falasse, sou a tua consciência.






queres uma chávena de chá?

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

as fadas polvilham






polvilhar: o verbo mais bonito da culinária. por causa dele comecei a gostar de ler as receitas de bolos em que sempre encontrava um "polvilhe com açúcar em pó" ou "polvilhe com um pouco de canela" ou... ah! é como se as nossas mãos fossem as de uma fada. pózinho aqui pózinho ali, tlim tlim aqui plim plim ali, um bocadinho de amor aqui um bocadinho de ternura ali...
tantos bolos que podiam não-se-chamar bolos de cenoura, laranja ou iogurte, mas, por exemplo carícia às trincas, torta de beijos, tranças de mimo. sei lá. os doces precisam de amor, as nossas mãos servem para isso, para os polvilhar de... sim, é isso.



vou fazer biscoitos e baptizá-los de meiguinhos de amêndoa.


(acho que vão ficar enjoativos, com este açúcar todo que me cobre as palavras)

sábado, 10 de dezembro de 2011

Dánae




"eu e este quadro temos um segredo."








Rembrandt, Dánae

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

está escuro aqui




espirituosa é a noite que se derrama pela cidade como um copo de vinho tinto na toalha branca. suspende a luz democrática do dia, e logo instala as trevas, generoso abrigo da intimidade dos gestos que temem o julgamento dos olhares. embriaga os corpos abatidos pelo acumular das horas, liberta os pensamentos vassalos do protocolo social, semeia o instinto nos lábios adormecidos dos inseguros. noite, mãe do desejo, noite, animal selvagem, noite, pele silenciosa. tudo nasce e torna a ela. do escurinho do seio materno viemos, ao escurinho queremos voltar. que estrelado estava o céu, quando, fetal, na barriga da minha mãe eu habitava.



não tenho medo do escuro, mas… podes dar-me a mão?

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

a notícia é uma tempestade





As portadas das janelas batiam furiosas. O vento, lá fora, assobiava que nem um velho gaiteiro, uma música que convidava as envergonhadas areias da praia a dançar, num ritmo e compasso constantes, formando sensuais corpos em espiral que se agitavam em consonância harmoniosa e inebriante. Até o sol, cansado de brilhar, tirou uma folga para se aconchegar na sua vaporosa poltrona branca celestial, a fim de assistir ao fenómeno digno de se ver.
Tudo indicava que o dia era bom para ficar em casa. Foi o que fiz.
Contudo, atraída pelo barulho da festa que se avizinhava ali mesmo, debaixo da minha janela, debrucei-me sobre o parapeito frio e rugoso, e senti toda aquela atmosfera convulsiva e sublimada entrar-me nos interstícios e chegar ao coração. Fiquei assim, pura e simplesmente a presenciar o espectáculo, a apreender a sua essência…
O mar, cor de cinza, gritava roucamente a sua dor, levantado enormíssimas lágrimas de revolta que chocavam contra os inócuos rochedos, num combate implacável, mas desigual; depois, amainava e transformava a sua cólera em restos de espuma nívea e salgada que desaparecia na fome da areia molhada.
No firmamento, as nuvens vestiam-se de negro e juntavam-se a esta luta, lançando raios de luz que iluminavam todos os passos errantes, envolvendo toda a terra num bater de tambor que a fazia estremecer e confundir-se com as trevas.
Assim se detiveram, durante algum tempo, os elementos da Natureza, mostrando o seu poder e desafiando os próprios Deuses, Zeus e Poseídon.
Por fim, a noite chegou, sem grande contraste de luminosidade face ao dia, mas carregada de tímidas estrelinhas que apagavam as suas luzes em reverência ao duelo de titãs.
Adormecida nesta guerra natural, despertei para o meu próprio estado: sentia o meu corpo tremer, sem saber se de perturbação ou de frio, e tinha o rosto encharcado pelas rajadas de vento e chuva que me açoitavam. Fechei a janela e pus-me a pensar. A pensar na razão daquele alvoroço, deixando de parte as explicações científicas, que me pareciam sobrepujadas por outras justificações do domínio metafísico, que tantas vezes nos parece incompreensível. Porém, nesse dia, o metafísico não poderia ter sido mais inteligível ao meu entendimento humano, trazendo em si a notícia mais amarga que poderia ser processada nas minhas ideias. Nesse dia, um Soldado da Paz havia partido em busca da fonte da eternidade…
Levada na corrente da tristeza mais profunda que conheci, dei permissão aos meus olhos de transbordarem a tempestade que me tomava, e as suas águas fortes elucidaram-me a vista que antes, refém do coração, tinha observado a ilusão, e que agora apenas deixava verter uma lágrima que cessava nos lábios com uma só palavra: Pai.






escrevi este texto aos 16 anos, para um concurso literário que me valeu o primeiro lugar. não sei se terá sido realmente o melhor texto, ou se o júri já conhecia uma certa forma de escrever, de uma certa aluna. mas gostei de saber que quem o leu, tenha sentido, como eu, a turbulência nos olhos.tinha 16 anos, e tive força e engenho para escrever isto. hoje não teria tanta impulsividade para descrever com semelhante pormenor... o que descrevi.


escrevia assim. e afinal, se for a ver bem, ainda escrevo. mas falta-me a audácia que tive aqui. no momento da escrita.




este texto foi um trabalho de parto.

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

um cigarro.





ao fumar um cigarro, três ideias surgem em fluxo (a partir de uma só): sou feliz agora, porque faço o que gosto, penso o que me apetece e choro com prazer.


sabe bem. é bom. é um cigarro que apenas conta uma história.




fumei-o?

sábado, 19 de novembro de 2011

assobio



já ninguém canta em assobio, pensava eu. mentira. hoje havia um assobio no ar que penetrava o ruído quotidiano e o anestesiava; uma espécie de agulha que perfura cirurgicamente o tecido do barulho da cidade distraída... esquecida da melodia dos lábios.




este assobio fez o meu dia.




quarta-feira, 16 de novembro de 2011

I would prefer...



a solidão do gesto percorre a linha do determinismo. nem mais, nem menos: o que é. cai no abismo de si mesmo sem que um grito de revolta tenha tempo de se apossar dele. o silêncio austero da contingência: o que é. o mundo já está escrito para nós. sigamos, na solidão deste gesto, com o dedo sobre cada linha do livro da nossa vida. não há vírgulas a mais ou a menos. a gramática é uma lei que desconhecemos. somos o dedo que aponta e apenas isso.


(hoje fico na página 214.)







estava a sonhar que era possível escolher não fazer, como o Bartleby (I would prefer not to).


acabei de acordar.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

busca



olá... está aí alguém?















não te escondas de mim.

domingo, 6 de novembro de 2011

esta é a canção



atrás da porta. atrás da porta.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

desenhos para ti




estás no sítio das coisas eternas, eu perdoo-te. envia-me um bocadinho do infinito, em troca eu faço-te um desenho bonito e peço àquela avioneta que to faça chegar.
já não sei desenhar como quando tinha 6 anos. os meus desenhos agora não fazem sentido, são adultos e vazios, as linhas já não têm mistério nem provocam a compulsividade deítica. há qualquer coisa que mudou. o que mudou foi o sentido de verdade. dantes a verdade era uma viagem, agora a verdade adotou o nome morte.


quando conhecemos o verdadeiro sentido desta palavra, não mais desenhamos com a mesma esperança de que o que fizemos vai chegar ao outro lado; não mais gravamos a magia e a inocência nos traços sinuosos e aventureiros que o lápis, feliz servo, percorre na folha branca.





e voltar a ter 6 anos?

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

o que é que escolho: ser ou ser?



a linha entre o que somos e o que devemos ser é muito ténue. umas vezes somos como achamos que devemos ser, como alguém nos disse para ser, e nesse ditado perdemos a referência do nosso verbo. outras, seguros no nosso eixo ontológico, temos a audácia de ser, simplesmente ser, de respirar pela nossa boca, sem atentar ao cumprimento do código da estrada das aparências, e aí somos multados pela nossa péssima condução, que coloca em perigo os outros condutores. todos procuramos a nossa estrada, recta, no deserto, OU, o condutor que não nos apite e aprenda connosco a arte da má condução (e que, respirando pela sua boca, partilhe também um pouco do seu ar).
ambas utopias.

estamos destinados a viver nas trincheiras entre o que somos e o que é suposto sermos. uma guerra sem tréguas.


talvez se vendarmos os olhos nos divertamos mais neste jogo.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

almofada




tenho a almofada encharcada dos sonhos que verto, sem querer, sobre ela. sobre ela não, para dentro dela, da sua textura mole que os absorve como uma esponja que lava desinteressadamente a loiça e contacta com a sujidade dos pratos. os meus sonhos são também eles água suja, água que já lavou outros pratos. água que precisa ser renovada, para que não fique retida na almofada e, pela sua pureza possa voltar ao céu e transformar-se na chuva que tudo abençoa.




vou trocar por agora a almofada, e carregar outra de água.


pode ser que esta água venha mais cristalina.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

chá-vena



às vezes é isto mesmo: sou eu e a chávena. a fiel chávena que me beija os lábios cansados e verte o líquido que escorre até ao hipocentro das minhas divagações sísmicas.


às vezes é isto mesmo. e eu gosto assim.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

vestir/despir




a linguagem é a minha roupa. se me falta a palavra sinto-me nua.

hoje vesti saia. não era muito curta, porque não gosto de poupar no tecido do verbo; não era muito comprida, porque não gosto que tape demasiado a comunicação directa. não era justa porque não gosto que ela denuncie a forma dos meus pensamentos; não era transparente, porque não gosto que revele os meus segredos.

toda a linguagem pode ser a bandeira ou a máscara de uma ideia. é preciso usá-la com moderação. é este o conselho que te deixo: veste a roupa adequada; não escondas muito a alma, mas também não a ofereças de bandeja. (o que vale para o vestir também vale para o despir: devagar, se faz favor, e não completamente. deixa ao menos a roupa interior, que é como quem diz, a palavra-chave do teu coração. não dês o código: deixa que o descubram).


resgarda-te na linguagem: ela encarrega-se de te ditar aos outros.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

os lindos olhos do Tejo



da minha varanda vejo Lisboa. vejo Lisboa porque vejo o Tejo, o olho azul da cidade que pisca para mim num convite à vida. cada manhã é mais leve ao meu espírito porque sou apanhada nesse piscar de olhos que demora o tempo de um café curto. bom dia é o que digo à chavena vazia; um sorriso é o gesto que devolvo ao azul que me enfeitiça. pensará a vizinha do lado, uma senhora com alguma idade, que tenho estranhos rituais logo pela manhã. "cada um com as suas..." já dizia o outro.


e o outro dizia bem.

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

ruf ruf



roçamos na vida uns dos outros como o roçagar do vestido de uma dama do século XVIII. é um ruf ruf constante, mas quase imperceptível, monótono. ela entra no grande salão onde está a corte inteira, "olá" aqui, "olá" ali, ruf ruf aqui ruf ruf ali... não olha a quem dirige as palavras mecânicas e distraídas, roça-as no ouvido, também ele acomodado ao hábito (e por isso desatento), do receptor, que sente uma leve comichão pela natureza sintética do tecido das palavras ligeiras.

assim se fazem as relações: do ruf ruf superficial do vestuário que não nos permite o toque de pele. mais propriamente, do ruf ruf que traja as almas abandonadas.



no século XVIII era assim. alguma coisa mudou?
(vivemos tão apertados nos nossos corpetes)

sexta-feira, 29 de julho de 2011

não interessa



o meu sorriso faz um parêntesis.

tudo o que sai da minha boca são apartes. tudo o que fica por dizer é o que realmente interessa.

a língua não sabe articular o essencial, deixa-se seduzir pelos artifícios dos lábios... que só querem sorrir, que só querem 'fazer parêntesis'.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

leve



são pedras. são pedras que me crescem por dentro. sinto o peso que a balança não acusa, o peso que embaraça o caminhar, como um saco quase a rasgar de tanta carga. são pedras que roubam o lugar umas às outras, numa disputa pelo espaço que faz esticar a pele à semelhança de uma barriga de grávida. são pedras que não páram de crescer e de se multiplicar, como os pães na mão do profeta.

tenho de vomitar estas pedras, ou elas transformar-me-ão numa rocha. quero ser dúctil, ligeira, experimentar o lado positivo da leveza. quero sentir a Insustentável Leveza do Ser.

terça-feira, 28 de junho de 2011

sexo




o meu cérebro é uma vagina onde penetra profundamente a ideia SONHO. perdeu a virgindade com a ideia LIVRO, mas permanece fiel à ideia ÁGUA. a ideia LARANJA é mais ao Domingo, dia amargo, ainda assim, não satisfaz tanto como a ideia PORTA, que nele investe com a regularidade que bem entende.
há dias teve um orgasmo com a ideia LIBERDADE. Pode ser que ela aceite ser sua amante por tempo indeterminado.



Que mente prostituta.



tive um sonho em que boiava sobre a água com um livro numa mão e uma laranja na outra. essa água corria para uma porta que abria e fechava ao sabor da corrente autoritária que a forçava. do outro lado encontrei algo que me pareceu um reflexo de liberdade, no espelho que a água proporcionava. ela fugia e voltava, aos risinhos. enquanto isso a água inundava a interioridade do meu corpo, fazia sexo comigo, como uma ideia que nos consome e faz tremer. entrava pela vagina e, na sua fluidez, envolvia a alma. afoguei-me e senti a liberdade.



com um livro na mão e uma laranja na outra.



Que mente prostituta.








recomendação: sexo seguro com as ideias. mas não caia no erro de usar o preservativo da marca amor, porque tem tendência a romper no momento mais crítico.

domingo, 5 de junho de 2011

delirious eye






'I have been happy, tho' in a dream.
I have been happy- and I love the theme:
Dreams! in their vivid coloring of life,
As in that fleeting, shadowy, misty strife
Of semblance with reality, which brings
To the delirious eye, more lovely things
Of Paradise and Love
- and all our own!
Than young Hope in his sunniest hour hath known.'



(Edgar Allan Poe)




posso ficar aqui, onde tudo e nada acontece? onde a retina delira e o coração transborda?








quarta-feira, 1 de junho de 2011

o nada que mata




se calhar não fiz.

se calhar não disse.

se calhar não mostrei.

se calhar não soltei.

se calhar não vivi.
se calhar entorpeci.

se calhar calei.

se calhar reprimi.

se calhar guardei.
se calhar escondi.

se calhar fingi.
se calhar sufoquei.
se calhar matei.




fechei a porta. a chave está do lado de fora.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

diário de um (auto)convencimento



foge. inverte a marcha, não vás por aí. foge. não insistas com a chave na fechadura errada. foge. deixa de ver “com” onde está “sem”. foge. não te prendas no que poderia ser. foge. dá ordens ao teu corpo para agir. foge. pára com essa treta da psicologia. foge. não sossegues o espírito com uma garantia. foge. anula o pensamento. foge. silencia o grito impaciente. foge. droga a vontade. foge. nada te prende, nem mesmo a tua afecção cega.


à desordem que te quer dominar responde com a disciplina da fuga.


entrega aos pés essa demanda, e não deixes que a cabeça interfira. esquece tudo o que já existia sem ter existido.
vai.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

pausa



o tempo são passos. ouço passos na minha cabeça. passos urgentes que aceleram à medida que o labor das ideias aumenta.
o tempo não foge nem voa, ele circula na sua flânerie dentro de mim. está aqui. olá tempo. deixa-me em paz. podes sentar-te um pouco. a caminhada ainda é longa (espero eu); tem calma.
ofereço-me à pausa do tempo (ou é antes ele que me dá o benefício dessa pausa). os objectos estão todos a olhar para mim na sua estupidez máxima. sinto-me superior à minha caneta.
1 2 3 4 5 6 7 8 9 …


o tempo parou dez segundos, que pressa que ele tem. já ouço novamente os passos familiares da sua promenade. já posso dormir descansada, porque hoje vou sonhar. tenho a certeza. os seus passos trabalham para a dimensão do incosciente…




acho que já estou a dormir.

domingo, 24 de abril de 2011

os livros estão sempre sós



Os livros estão sempre sós. Como nós. Sofrem o terrível impacto do presente. Como nós. Têm o dom de consolar, divertir, ferir, queimar. Como nós. Calam a sua fúria com a sua farsa. Como nós. Têm fachadas lisas ou não. Como nós. Formosas, delirantes, horrorosas. Como nós. Estão ali sendo entretanto. Como nós. No limiar do esquecimento. Como nós. Cheios de submissão ao serviço do impossível. Como nós.




Ana Hatherly

domingo, 6 de março de 2011

aquarium


nado nas profundezas de um Eu. existem relógios, cartas, livros, chávenas e outros objectos que fazem a síntese desse Eu: os relógios são o tempo perdido, ou o tempo que se correu atrás; as cartas o "em vão" das palavras escritas; os livros o ar puro para a alma asmática; as chávenas os encontros fugazes da vida... a água que reveste estes objectos é a sua película protectora, é o elemento que permite uma segunda vida: a vida de peixe.

sou um peixe que, às vezes, nada até ao mais fundo da identidade e remexe o sótão das memórias. um peixe que dá a essas memórias as possibilidades perdidas.


há um aquário de sonhos à minha espera.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

porta


aguardo piamente a ruptura do silêncio que se instalou aqui. aqui, onde as paredes brancas parecem ampliar tragicamente o maldito silêncio.
a solidão das paredes brancas é degradante: nem um quadro, nem uma fotografia, nem um traço disforme da caneta na mão de uma criança. nada.
as coisas permanecem iguais a si mesmas. olho uma e duas vezes, em intervalos de segundos, e tudo se mantém estupidamente na sua existência imóvel.

respiro o aroma perfumado que uma vela acesa oferece, e penso:

porque é que carrego este quarto dentro de mim?
ninguém abre a porta cujo ranger é a mágica quebra do silêncio.

(onde estou?)

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

primeiros sintomas do dia


6:55h da manhã. manhã? pronto, manhã em trabalho de parto.
movimentos empedernidos do corpo, dor de cabeça que grita "não são horas para a realidade".
vestir calças, vestir camisola, lápis preto nos olhos, calçar botas, envergar casaco e mala ao ombro, para parecer gente.
chávena quente a aquecer as mãos: capuccino.

rua quase deserta, calçada húmida, passos arrastados, olhos semicerrados.
ainda durmo.
aula. entrar. sentar. abrir caderno. tirar a tampa da caneta.
mecânica deliciosa.

a manhã é a altura do dia que corresponde a uma anestesia geral, em que estou protegida pelo sentimento de que "nada pode acontecer de mal", como se de um período extraordinário se tratasse. os anjinhos do sono permanecem a meu lado, como uma prótese do sonho.
não acordo até ao tabefe do "bom dia".

a manhã é um lugar estranho.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

air


há um ar que transporto cá dentro e me pesa.
pesa.
pesa.
como a mochila carregada de livros que levo às costas, ele pesa.
pesa.
pesa.
não consigo respirá-lo, libertá-lo de mim, dizer-lhe para não me pesar.

o ar que trago cá dentro é aquele que dá fôlego ao beijo mais sincero, mais feliz, mais sentido, mais acanhado e mais partilhado.
enquanto o beijo se pensa a ele próprio, carrego no corpo o ar que me alimenta o coração.


éter da alma.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

sentir


eu sou o meu corpo que caminha, os meus gestos que se repetem , a vida que se cumpre. às vezes sou apenas isto. sou isto e a minha própria ausência, um vazio dentro do vazio, o eco do silêncio, a ideia sem movimento. às vezes esse silêncio bruto grita-me dos confins da consciência, e eu reactivo as funções vitais do intelecto e grito mais alto que ele.

hoje tenho um grito emudecido pelo pudor do coração. hoje é desses dias, em que penso sem sentir. hoje recuso o movimento da alma.
ela só aceita dançar na suspensão do grito.



depois disso posso sentir?

por favor.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

agora


vou ali pôr a máscara para brincarmos um bocadinho. agora. tenho ganas de dançar naquele vestido rasgado, e de colocar a peruca do carnaval passado. agora. quero fingir que sou eu na minha outra pele, sem deixar cair a alma no chão. agora. quero sentir o conforto desta máscara que não tapa, mas destapa. agora. quero ser transparente no próprio fingimento.

há uma vontade que me habita. agora.